domingo, 30 de outubro de 2011

O REVÓLVER.





No ano de setenta e três começamos o real contato com doentes. Era, apesar de acompanhados por preceptores, um motivo de orgulho e ansiedade. Estávamos na disciplina de dermatologia. O estágio era composto por: um preceptor e um grupo de oito estudantes. O atendimento era feito num consultório amplo, o que permitia um bom exame dos pacientes. Era claro e bem iluminado, como exige a especialidade.

Cada doente que chegava, era encaminhado a um biombo, onde ficava de roupas intimas para permitir um exame completo. A princípio me ocorreu certa apreensão. Naquela época a exposição do corpo era incomum, e a sexualidade era privada causando vergonha nas moças e senhoras. As mulheres de mais idade, muitas vezes morriam de câncer, por se recusarem a expor suas partes intimas ao ginecologista; mesmo que fosse de sexo feminino. Acreditei que o sexo feminino teria dificuldade de desfilar em trajes íntimos para oito ou dez homens. Meu grupo só tinha homens e na turma daquele ano havia apenas quatro alunas. Enganei-me. Não tivemos problemas.

Após alguns doentes chegou um senhor entre trinta e quarenta anos, típico caipira, com bigode, botas, colete e arrastando os erres. Tinha pouca expressão facial e olhar atento a tudo que acontecia. Sentou-se. O motivo da consulta era uma “ferida na perna que não sarava”, Pedimos que fosse despi-se.  Pediu para deixar alguns objetos na nossa escrivaninha, o que concordamos.

Sr Joaquim, era o nome dele, colocou sobre a escrivaninha a carteira, o rolo de fumo, a faca de cortar o mesmo, de um tamanho razoável, e seu revólver. Não era habitual o uso de revólver na região; apesar de inicialmente chamar Alta Floresta, depois é que mudou para Marília. As florestas tinham se tornado culturas e não mais existiam. Ficamos desconfiados, mas continuou o atendimento.

O doente apresentava um corte não cuidado na perna, que se tornou uma úlcera pequena de fácil resolução, com cuidados e banhos de Permanganato: sendo um envelope diluído em quatro litros de água previamente fervida e aplicam-se vários banhos diários.

Vestiu-se, foi bem explicado o procedimento, como de costume para uma aula demonstrativa. Foi embora.

Após quinze dias, eis Sr. Joaquim de novo, reclamando que piorou. Não mandamos que se despisse, apenas que tirasse a bota para verificarmos a situação. Realmente estava pior, onde havia a úlcera agora tinha uma queimadura. Aventamos a hipótese de ser a medicação e perguntamos como esta foi usada:

-Ora, coloquei quatro envelopes no litro de água, como os senhores falaram e, banhei o dia todo.

Confesso que com medo observamos: - Era um envelope para quatro litros, queimou pela medicação.

Sr. Joaquim olhou de rabo de olho, deu um sorriso de lábios cerrados, o primeiro que vimos nos dois atendimentos. Falou:

-Fiz errado.

Demos orientação do novo procedimento, ele se despediu e foi embora. Creio que sarou, pois ele e seu revólver nunca retornaram.


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