segunda-feira, 14 de novembro de 2011

EXERCER MEDICINA.









Em final de dezembro de setenta e quatro recebi meu diploma. Já era médico, faltava ainda reconhecer o cartucho, mas por direito já era um profissional. Comemorei com parentes e amigos e, dia seguinte, fui iniciar meu oficio em Irapuru, cidade pequena e simpática da Alta Paulista, onde tinha combinado se houvesse adaptação, ficar como médico.

Logo cedo me desloquei, a cidade ficava cerca de duzentos quilômetros de Marília, onde morava, junto com Ana, minha esposa, e nosso filho Rodrigo de quatro meses. O dia estava nublado e chuvoso, o que em muito aumentava a ansiedade de iniciante. Agora era por minha conta, não mais havia professor ou preceptor responsável. Achava-me bem preparado. O curso era excelente. No tempo disponível tinha me dedicado ao máximo, lido tudo que podia, vi todos doentes internados, isto apesar de lecionar a noite para manter as despesas. Ana também lecionava

 Era à hora da verdade: tinha de manter a família e ainda pagar uma parte que devia a Faculdade, de mensalidades atrasadas.

Irapuru era bem pequena. A parte central bem arrumada, com asfalto, seguia a uma periferia mais pobre, de casas mais humildes, a seguir a zona rural. Nesta época predominava o café e algum gado. A cultura de café, devido à área muito grande de plantio, forçava contratos de parceria para tocar a lavoura, o mais comum era o meeiro; Isto tornava a região com bom poder aquisitivo, aliás, como era toda Alta Paulista na época.

Dirigi-me, já na cidade, ao Hospital. Ficava um pouco afastado do centro. Como a terra estava molhada, o fusca que dirigia não subiu a ladeira que dava o acesso mais curto. Tive que dar uma volta. O Hospital era amplo, havia uma enfermaria para gestantes, duas para clinica e cirurgia e quatro amplos apartamentos, um tanto exagerados, perto de trinta metros cada um, com armário embutido e banheiro. Tinha um Raio X com um aparelho de baixa potencia, os postinhos de enfermagem e a recepção. Mais um espaço para laboratório, não existia previsão de instalação e funcionamento. Ao lado da recepção estavam as duas salas de consulta e a seguir o centro cirúrgico-obstétrico, adequados para o trabalho.

Estavam esperando oito pacientes, todos particulares. Sempre há curiosidade de conhecer o médico que se propunha mudar para o município. Dr. Arnold o médico que eventualmente dava consulta ali, era morador de Pacaembu, cidade vizinha,

Arnold não havia chegado. Fiz meu primeiro dia coincidir com o que ele atendia. Estavam marcada três cirurgias, todas de pequeno porte, a cidade não comportava cirurgias maiores. E também não conseguiria fazê-las.

Almocei no Hospital, Dr. Arnold chegou.

No meio da tarde apareceu um fazendeiro da região, o Sr Yoshie cujo pai idoso morrera na fazenda. Tinha de se verificar o óbito. Não havia medicina legal na região. O colega falou: - Vá Antonio e eu fico operando com a enfermeira.

Como ainda não tinha saído meu CRM ele teria que assinar. Após recomendações de verificar se realmente a morte foi natural, deixou um impresso preparado com sua assinatura para quando retornasse da fazenda.

Atendi mais alguns doentes, e segui para a verificação. A sede ficava cerca de duas horas distantes. Segui no carro da família, uma perua confortável.  Yoshie, o filho e motorista pouco me informou do acontecido, apenas disse que o pai já idoso há muito se encontrava restrito ao leito e morrera após almoçar.

Começava entardecer, continuava nublado e escuro o final do dia Após alguns minutos de asfalto pegamos uma da estrada de terra e logo depois começamos a atravessar pastos, e abrir e fechar porteiras.

 A região era infestada de corujas que voavam quando o carro passava. Pequenas corujas, típicas de pasto, onde fazem toca. Paulistano, nunca tinha visto corujas soltas, lembro que quando adolescente, morreu o avô de um amigo e culparam a coruja que tinha cantado na janela do mesmo, esta superstição abrangia todo meu conhecimento.

Chegamos à sede, já escuro. Era um ancião, todo retorcido por uma artrite deformante, emagrecido, aparentemente era morte normal. Verifiquei os pulsos e batimentos cardíacos, ausentes, o que era desnecessário, pois o senhor já estava rígido. Sempre há uma insegurança para se atestar morte.

Retornávamos. Yoshie condoído pouco falava, a chuva caia e as corujas voavam com a luz do farol. Pensei comigo: - Meu inicio parece um filme de terror. Tinha visto muita morte na faculdade, mas nenhuma como esta. Mesmo na epidemia de meningite, onde fiz dois estágios no Emilio Ribas, vi crianças dolorosamente morrer, vi adultos morrerem seguidamente, mas eu não era o ator. Sempre havia alguém responsável acima de mim. Era ele que tomava a conduta, se responsabilizava pela medicação e também pela morte. Compreendi que, mesmo estagiário, não passava de um voluntário que participava, mas não pertencia realmente. Agora, este senhor falecido sem meus cuidados, apenas fui atestar sua passagem, era realmente alguém que me tocava, constatei a não vida, confortei mesmo sem traquejo a família, preencheria o atestado. Era, na noite escura, meu primeiro paciente real, mesmo já partido. Maneira estranha de se conscientizar da responsabilidade.

Chegamos ao Hospital, fornecido o documento, cobrado conforme o costume local, Arnold já tinha orientado a recepcionista de quanto cobrar, mesmo não sendo para ele,

Atendi mais duas ou três consultas. Peguei a féria no caixa e me recolhi ao apartamento.





                                                   II



                                 O SONO





Tomei banho. Vesti-me e corri o hospital, só tinha três ou quatro funcionárias, não havia doentes internados pela falta de médico. Lá fora tudo escuro, fiquei inseguro, poderia aparecer um parto complicado. Parto simples o pessoal tinha prática, sempre fizeram, mas com ocorrência, não havia ambulância na cidade, tinha ido não sei aonde; e se aparecesse um baleado ou um acidente. O que faria? Temeroso, recolhi-me ao quarto.

Após estar de pijamas, contei o dinheiro. Era muito, mais que um mês de trabalho da família, naquela hora era uma fortuna. O Hospital era isolado, só eu de homem, tudo escuro. Muito escuro lá fora, nenhum ponto de referencia. E, se aparecesse um ladrão?

Comecei a abrir os armários para ver algum local seguro. Ocorreu-me que se guardasse um pouco do dinheiro, bem pouco, no meu bolso e escondesse o restante o imaginário ladrão seria enganado.

Se dormisse de luz acesa este possível ladrão poderia ficar com medo.

Passei a noite de luz acesa, deitando e levantando procurando um lugar seguro para o dinheiro que ganhei. Logo eu, que sempre fui desprendido de dinheiro e mesmo em situações muito adversas sempre dei um jeito. Mas, o dinheiro tornava-se muito importante naquela hora; tinha um filho pequeno, com gastos e faltando bastante coisa. Estava na casa do sogro, o que no momento era necessário, já que a Ana estava acabando também a faculdade de Sociologia. No ano seguinte era obrigatório que tivéssemos nossa casa e independência.

Entre análises sobre a vida, sobre o roubo possível e o valor do dinheiro. Isto somado a meu debute com a morte, à noite e as fúnebres corujas. Com a luz acesa e o dinheiro escondido, não dormi.

Pela manhã atendi mais alguns doentes e fiquei de voltar em três dias. Retornei ao lar.





                                                    III

                        

                       

                                           O SUPER MERCADO.



Na viagem de retorno vinha com um misto de euforia e dúvida. Poderia ganhar muito dinheiro. Todos os médicos que aceitaram a região tinham sua fazenda, bom saldo bancário, alguns inclusive entraram para a política.  Alguns conseguiram ser prefeito e até deputado. De outro lado, ficaria isolado, com poucas oportunidades de evoluir na profissão. A Ana no máximo conseguiria ser professorinha, não valendo de nada sua faculdade.

A morte ainda me impressionava muito. Realmente a experiência foi traumatizante. Cheguei a Marília. Adiei o assunto.

O almoço estava pronto. Fizemos a refeição. Fomos ao Super Mercado. A dispensa estava bem debilitada. Fiquei alegre. Encontramos um carrinho de bebe, Rodrigo ainda não tinha. Este carrinho tinha adaptado um bebe conforto. Era super moderno. Ana imediatamente colocou Rodrigo no carrinho, braços estavam doloridos, sempre foi um garoto forte.

Ao pagamos a conta, percebi que estava menor do que esperava. Ao conferir, constatei: - Não tinha sido cobrado o carrinho, onde Rodrigo brincava alegremente. Sempre foi uma criança alegre. Pedi que incluísse.

 Paguei e fui dormir.




















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