terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

o incesto

                               O INCESTO





Atendia no ambulatório da Santa Casa. Era l976. O atendimento era feito, como até hoje na parte que seria o porão do prédio. Tinha três salas de consultas e uma de curativos, pequenas cirurgias e exame ginecológico. Fazíamos tudo, poucas especialidades eram organizadas e prestava atendimento, a mais constante era a equipe do Dr. Nathanael Mello da vascular.

O volume de consultas era muito grande. Lá ia quem não podia pagar e o Fundo Rural com quem a Instituição tinha convenio. Particulares só se não tivesse médico ou o mesmo não pudesse atender; o que era rigorosamente respeitado e perguntado na recepção.

Geralmente no meu horário em todos os dias úteis, ocupava duas salas. Enquanto a enfermagem preparava as pequenas cirurgias [suturas, extração de unhas, drenagem de abscessos, etc.], ou exames ginecológicos, ia adiantando as consultas; depois me deslocava para o procedimento e voltava uma vez terminado para a sala anterior, enquanto a outra era novamente preparada. A média de atendimentos aproximava-se de sessenta no horário. Realmente era muito corrido.

Num dos dias de atendimento entrou na sala uma família de Bóias Frias. A sala era espaçosa e eles costumavam entrar com a família toda. Na verdade chamá-los de Bóia Fria era atenuante. Já conhecia bem estas famílias não existentes. Era um pessoal que trabalhava em colheitas. Não tinham casas, titulo de eleitor e, talvez nem identidade. O seu viver consistia em acompanhar lavouras desde o Mato Grosso até o Paraná, passando por São Paulo. Em Marília e região na época da colheita de café. Para os lados de Ribeirão e Bebedouro na de laranja e corte de cana.

Nas grandes cidades como Ribeirão e Marília, “os gatos” os acomodavam em casas de madeira nas periferias. Eram grandes casas, geralmente velhas e mal conservadas, onde cada família se acomodava em um cômodo, com cozinha precária e banheiro no quintal. Iam à lavoura em caminhões descobertos, com acidentes freqüentes e com vitimas fatais.

A lei que obrigou a cobrir as carrocerias e o uso de ônibus é bem posterior.

Esta população, portanto era inexistente, não conseguia nem ser oculta. Sem casa, tinha ocasiões que dormiam, quando o patrão era bom, no Galpão da fazenda, já nos displicentes levantavam uma lona no meio da plantação e, lá ficavam dormindo, todos juntos no chão, sem higiene e com precária alimentação. Acabada a colheita, nova peregrinação.

Apesar de pouco citados em livros, esta população era significativa, a ponto de conversando com Irmã Joana, uma adorável freira nissei ela concordou em organizar e distribuir a medicação, as amostras grátis, conforme fosse receitado. O estado não fornecia um comprimido sequer.

Esta família, composta pela mãe, uma senhora sofrida e acabada que parecia avó da moça s ser consultada; seus irmãos de dezoito anos e quatro irmãos menores acompanhavam a paciente que se queixava de dor na barriga. Esta menina ainda não tinha completado catorze anos, tinha certo retardo mental. Confirmado pela mãe.

Examinando percebi uma gravidez avançada. Pela a idade era caso de estupro. Falei:

-Esta menina está grávida, vou ter que avisar a polícia.

Gerou pânico. A mãe entrou em desespero, naquele falar arrastado de zona rural começou a se explicar.

-Doutor, o filho é do irmão. A gente dorme encostado um no outro no frio e aconteceu, sabe, são jovens. O pai dele morreu faz um ano na roça. Ele é o único que trabalha. Se ele for preso a gente vai passar fome. Esta criança não vai conseguir nascer. E continuou veemente na ladainha.

O fato de passar fome, ela, a menina grávida e o rebento a nascer, juntamente com os irmãos me parecerão verdadeiro. Já estavam excluídos socialmente sem nenhum crime. Mas, e o rapaz, recém adolescente? Era cômodo aproveitar-se da irmã deficiente?

Porém como um rapaz de dezoito anos, praticamente um adolescente, semi-analfabeto, sem casa, comida, roupas e, responsável por uma família de seis pessoas encarava as regras sociais de um mundo que o abandonou?

Será que o dormir abraçado no frio e, acontecer um ato sexual pode ser atribuído uma culpa a dois jovens?

 Que direito esta sociedade que joga uma família no total abandono e tira-lhes as condições de existir, tem de cobrar uma regra social que ela mesma não implanta?
Tenho eu, como médico o direito de julgar o certo e o errado e, se punir o infrator, se é que é infrator, jogar o resto da família em uma penúria maior, com risco de matar um ou outro membro de fome?

Se acionar a policia ele seria imediatamente preso, as atenuantes seriam avaliadas depois. Ele seria estuprado na cadeia, como acontece com este tipo de crime e nada resolveria. Não era um maníaco sexual.

Realmente fiquei por um tempo tentando pensar. O dilema era proteger a lei social ou proteger a vida, independente do pobre adolescente adultizado ser ou não responsável.

Não tive coragem de solicitar a lei. Jurei preservar a vida e iria cumprir.

A manutenção da estrutura familiar, em nossa civilização judaico-cristã pertence à mulher. Ela que tem de que acionar ou não a justiça, não eu, cuja função e minorar dor e sofrimento. Não podia aumentá-los.

Passei um analgésico para a gestante. Adverti a mãe para cuidar da moral da família, que era sua obrigação. Orientei sobre o parto.

 Deixei-os andar pelo mundo, a esmo como sempre fizeram, sem nunca serem notados. Não me cabia agora mostrá-los.

Pedi desculpas para os pacientes que esperavam, dispensei-os. Estava com uma enorme dor de cabeça, fui tomar um uísque ainda assustado com o ocorrido.



29/02/12

tony-poeta pensamentos








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