quinta-feira, 19 de abril de 2012

APENAS VIVER


APENAS VIVER




Em meados de 1980 atendi uma senhora portuguesa. Vinha acompanhada de seu filho, um executivo, se não me engano bancário, o que se notava pelo terno elegante e sua pasta de couro. A consulta teve de ser traduzida. A senhora falava uma linguagem que, apesar de ter pelo lado paterno todas as tias e tios portugueses, portanto habituado com a colocação de frases e o respectivo linguajar de origem, não consegui entender quase nada.

A paciente Dona Lídia foi tratada, com a ajuda do filho, era viúva. Tinha vindo ao Brasil há meio século, devido às guerras portuguesas na África; estando seus dois filhos, Joaquim que a acompanhava e outro que não conheci, em idade próxima de serem convocados para a linha de frente. Venderam os bens que possuíam, creio que eram poucos, e para cá se dirigiram para a proteção dos mesmos. Este fato justificava o afeto que Joaquim nutria pela mãe, facilmente visível na consulta.

O tratamento durou cerca de dois meses. Neste interim Joaquim foi a Portugal, trouxe-me de presente um chaveiro com a imagem de Nossa Senhora de Fátima, que ainda o tenho e um galinho de chuva, este que muda de cor conforme a umidade. Por fim ocorreu à alta, curada.

O que me intriga é como esta senhora viveu vinte e cinco anos aqui sem se comunicar.

Na verdade habitava em sua terra uma localidade não tocada há séculos, pelo que vi no linguajar. As pessoas deveriam viver em comunidade fechada, com casamentos locais sem contato com o resto do país, a não ser para vender sua produção agrícola. Portanto, era uma população semelhante à população que habitava as terras dos antigos senhores feudais, que acabaram por tomar posse da mesma e lá permaneceram. A mudança com certeza foi um grande choque, só suportado pela exigência de proteção aos filhos.

A grande lição que me ensinou esta paciente foi que não somos estáveis onde estamos. O homem é o ser da guerra. Somos uma população ainda não estabilizada, que habita todos os cantos de nosso planeta, sempre em busca de alimentos e poder. Ninguém pode se considerar fixo. Ela, na verdade uma refugiada, levou seus filhos a um lugar seguro naquele momento, deixando toda uma bagagem centenária e toda sua história abandonada. Não se habituou ao país que a acolheu, tanto é que só se comunicava através dos filhos, estes sim adaptados e bem sucedidos no novo local, mas ela era apenas uma apátrida.

Deve ser extremamente doloroso não ter pátria. A perda da história pessoal, de seus valores familiares, de seus objetos, de sua terra, enfim, provocou um retraimento onde o único ponto de contato com o viver, e o que a manteve viva, foi a presença de poucos familiares, ou seja, seus filhos e o marido. Na verdade Dona Ligia vivia há um quarto de século em total solidão do restante do mundo. Para não aprender a língua, nem televisão deveria ver,

A situação a excluiu do mundo e provavelmente não viveu mais mundo nenhum, apenas cumpria a tarefa de deixar descendentes, mais nada. É muito triste, mas é a história da humanidade.

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