sábado, 21 de abril de 2012

DONA AURORA


DONA AURORA






Eu estava apavorado, Dona Aurora olhava pela janela que dava para a sacada, estava me observando. Eu tão pequeno, ela tão grande. Olhava-me, pela janela que eu tinha para olhar. Esta senhora mãe de uma amiga de meus pais, era tida como bêbada e eu, apesar de pouco a conhecer, morria de medo. Criei coragem, fechei a janela.

Porém, a janela dividiu-se em compartimentos, eram pequenas janelas por onde ela continuava a me olhar. Cada janelinha que eu fechava, os olhões de Dona Aurora apareciam e me vigiavam. A angústia era grande. Sempre havia uma nova janelinha, sempre a mesma vigilância e eu não conseguia me esconder.  Gritei! Gritei forte! Meus pais apareceram sorrindo e Dona Aurora foi embora. Pude mesmo com muito medo olhar a área externa do quarto sem ser olhado. 

Este episódio ocorreu quando eu estava na idade de nada lembrar, mas lembro. Quanto de real e de fantasia não sei avaliar, mas o pequeno, muito pequeno Antônio era sim olhado e vigiado pela gigantesca e bêbada Aurora. Esta lembrança, de quando em quando volta a minha mente.

-Lembrança encobridora, diria Freud. Você assistiu o sexo dos pais!  Provável.  Mas tem mais um significado. Mostrou-me o mundo e como me relaciono com ele. (A lembrança encobridora é aquela que substitui uma lembrança traumática por outra, também traumática, mais fácil de ser controlada pelo inconsciente.)

Todos adultos na minha infância são recordados como gigantes que me olhavam e seguiam, na verdade vigiavam meu mundo. Eu podia apenas olhar e procurar aprovação, mais nada. A janela foi exatamente a definição de minha posição, mesmo possuindo esta janela incontáveis janelinhas de controle, tinha a meu favor a janela ampla para olhar o horizonte, desde que soubesse gritar.

 Se todos nós temos uma fase do espelho, que bem demonstrou Lacan; onde diante de nossa imagem nos identificamos e ele nos identifica; nesta troca de nos vermos no espelho, supomos o que ele nos transmite. É ai que se cria nossa individualidade. Minha janela era mais ampla. Dona Aurora, a bêbada representava toda a sociedade e a situação social de pós-guerra. [O fato ocorreu ao redor de 1948] Era a representação da sociedade que vivia, cheia de restrições e dificuldades reais. Com o socorro tímido da família, que só se acionava com meu grito forte. Era eu e o mundo. Um mundo imenso e forte diante da fraqueza de uma criança.

Na verdade esta janela sempre norteou minha vida. Demonstrou claramente que a relação social não é só o que vejo, mas como sou visto. Consegui entender a preocupação que agita as pessoas ao se se apresentarem, falarem, se comportarem; enfim em relação ao Outro, que sabem muito bem que não é ele mesmo, mas sim o gigante que os vigia e está sempre pronto a lhe admoestar e corrigir. O Outro não é exatamente nossa imagem, mas a imagem vista na janela de Dona Aurora, cheia de vícios e mal falada, nos olhando. É na verdade a sociedade com suas virtudes e erros.

Nossa imagem só se confunde com o outro na Paixão; aí tomamos o lugar do outro e não mais somos olhados, pois não estamos em lugar nenhum: estamos fundidos. Mas como não somos o Outro e a este não pertencemos, a paixão uma hora acaba por separar os elementos e o jogo cruel e incerto de ser olhado e olhar volta a prevalecer e continuamos nossa caminhada insegura tentando viver.

Hoje, dia que faço 67 anos, voltei a lembrar desta janela e do esforço infrutífero de entender o ser para entender a vida. Vi que Dona Aurora ainda está lá, me olhando, apenas não sou tão pequeno, já posso fechar a janela; sem, no entanto entender quase nada do que é o mundo.

Foi esta a explicação que consegui para entender a dificuldade que tenho [Freud falou que é de todo ser humano] diante de um elogio, um afago ou um presente, ou seja, qualquer demonstração de afeto; mesmo que esperada e desejada. Tenho dificuldade de me expressar e demonstrar meu contentamento; que sai sempre aquém da importância que dou ao ato. É que o reino da outra janela é sempre misterioso e, me sinto sempre com uma carga de afetos menor do que quem me agrada no momento.

É interessante notar, onde a tendência em qualquer relação, temos que o elemento que está em posição inferior [não que seja inferior] tem dificuldades de elogiar, sendo o normal de sua fala ser sempre de agradecimento.

Tanto na critica como no elogio, o imaginário da pessoa coloca este agente em uma posição de superioridade [representa os pais ou sociedade]. Em contrapartida é portador de uma aprovação social, o que é muito gratificante.

21/04/2012

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