terça-feira, 5 de junho de 2012

O CARRO

O CARRO

Posição social I




-Doutor, o carro ficou muito caro e não posso lhe pagar. Boa parte dos acidentados assim procedia. Era ao redor de 1980, carro era custoso e de difícil aquisição. Era mais fácil é verdade que na década anterior, onde o lançamento do Pé de Boi, um fusca sem nenhum opcional provocou uma fila na Av. Paulista de três dias, até que o clube Homs fosse aberto para iniciar a venda autorizada pelo governo da época.

Lembro-me de um doente que teve uma perfuração intestinal num acidente. A cirurgia levou oito horas, como não estava ainda montado serviço de UTI foi acompanhado por vários dias com médicos se revezando diuturnamente ao pé do leito. Foi curado, na alta pagou o Hospital que cobrava à parte, e a ladainha:- Doutor: o carro ficou uma fortuna, acabou o dinheiro.

 Era dinheiro perdido, médico não costuma receber na justiça.

A indignação era grande, além de não reconhecer o nosso trabalho, achávamos que o valor da própria vida não era devidamente avaliado.

Com o seguro obrigatório, mais o seguro paralelo e os planos de saúde e serviços especializados em Hospitais, não mais tive contato com acidentados.

Chegou há alguns dias um senhor. Necessitava trocar a guia do convênio para uma Ressonância Magnética. Estava autorizada para um laboratório que demoraria muito e, dada à urgência, tinha arrumado outro Serviço que a faria na hora.

Era um acidente, com suspeita de lesão em coluna cervical, uma lesão preocupante tanto que pode provocar paralisia, dor crônica, perda de função de membros. Realmente grave. Tanto é que este senhor estava imobilizado que nem um robô, não tinha nenhuma mobilidade permitida para o pescoço e andava de bengala.

Perguntei se estava ciente de sua lesão. Respondeu que sim; tanto é que procurara onde seria atendido com maio rapidez. Perguntei-lhe como estava se sentindo, se doía; perguntas habituais que fazemos:

- Como o senhor está?

- O carro ficou destruído.

- Mas não está doendo?

- Aquele desgraçado cortou a preferencial e destruiu meu carro.

- E o senhor, está bem?

- Acho eu o carro não dá mais conserto, aquele desgraçado...

Diante da impossibilidade de dialogo, encerrei o atendimento. Continuava tudo igual. O carro tem mais valor que o médico e que o próprio doente. O carro em nossa sociedade representa a posição social da pessoa. É comum se escutar: fulano está muito bem de vida. Comprou uma BMW.

Esta representação, pelo que estou observando, prevalece inclusive sobre a saúde e o bem estar da pessoa. É de se pensar.



05/06/2012










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