Ezequiel,
coitado! Era feio, realmente feiinho. Com catorze anos, mulato de pele
pardacenta, cabelos cortados a militar pois não aceitava nenhum penteado, não
era nem crespo nem liso, havia parado pela metade, mesmo curto ainda arrepiava;
magro muito magro com orelhas de abano, sua mãe Dona Cleide explicava que seu
avô era igual, isto na foto que tinha visto quando era da mesma idade. Depois
ficou muito bonito. O rapaz esperava tentando se conformar com a feiura.
Por
outro lado era muito inteligente, lia muito, seu pai Osvaldo comprava todos os
livros que saiam para sua idade e, ainda dispunha de uma boa biblioteca. O
rapaz conhecia todos os volumes e autores. Estudava violão e inglês, que já
falava razoavelmente, só tirava nota máxima na escola e no convívio diário era
alegre e perspicaz.
Morava
em uma comunidade antiga no litoral, Senhor Osvaldo viera trabalhar de
carpinteiro há trinta anos, junto com a esposa. Terminado o trabalho na
construção civil houve uma invasão da área. O vereador Fontana, que vez ou
outra ia a obra, onde tinha facilitado o alvará.
Sabendo
que o Souza, dono da construção não havia pago o combinado e Osvaldo não teria
dinheiro para retornar com a esposa a Minas de onde saíra e, ainda mais, com
Cleide, sua esposa, grávida do primeiro filho, facilitou que ele invadisse um
dos lotes ao pé da montanha, com a condição de transferir o título de eleitor.
Sem
outra saída, foram morar na nova favela que foi denominada Canto dos Macacos.
De início trabalhou no que aparecesse. O fato de ser letrado e com visão
facilitou para abrir uma birosca na frente da casa; onde além de vender cachaça
ia colocando o que percebia que faltava no local: de linha de costura a
parafusos, lâmpadas, produtos para casa e cozinha e assim por diante. Quando a
rua foi asfaltada o pequeno comércio, já com boa clientela, foi ampliado para materiais
para construção e elétrico.
Como
conhecia tudo de construção e orientava a freguesia, o pessoal das casas de
veraneio adquiriu confiança e a loja não tinha mais onde ampliar, contava com
cinco funcionários além dele e da esposa e, possuía uma moça que fazia a comida,
a qual fornecia aos funcionários gratuitamente, além de cuidar da casa, já em
padrão de classe média alta, que fora construída no andar de cima do comercio.
Não ficava em nada devendo ao padrão das casas de veraneio.
Os dois
filhos que teve nesta época fizeram Direito, estavam formados, casados, com
filhos em São Paulo, sócios de um bom escritório de advocacia. Ezequiel era
rapa do tacho, nascera quando Cleide entrava em menopausa e além de única
companhia do casal era o xodó dos dois.
OS
SÁBADOS
O
grande problema acontecia no sábado. Os jovens da comunidade se reuniam na
Praça Central no período da tarde, lá iam ao Shopping, ao cinema, faziam
compras e jogavam conversa fora. Um momento de descontração para o aplicado
rapaz. Para chegar ao ponto de encontro o ônibus era obrigatório.
Neste
horário de final de semana a loja, apinhada de gente, não permitia que o jovem
pegasse uma carona; para voltar não haviam problemas. Da moradia até o ponto de
ônibus eram dez minutos, um quilometro aproximado, nada que um adolescente não
pudesse andar.
O que
complicava era em relação ao policiamento, como a onda de violência estava
muito grande havia uma triagem preventiva. Policiais truculentos, como é a
polícia de toda Brasil, seguindo um misto de resquícios da ditadura e práticas
importadas da América do Norte abordavam todos os que considerassem suspeitos,
sem um mínimo de critério, ou melhor, o critério era: se parecesse de família
importante ou veranista não eram suspeitos, caso tivessem um aspecto que não
agradasse e ainda fossem negros o alvo da abordagem estava determinado,
chegavam na maioria das vezes de modo agressivo, verificavam se não tinha arma
ou drogas, para isto palpavam dos pés à cabeça e seguir o possível meliante
ficava de braços estendidos na parede até serem consultados os antecedentes do
detido na Central. Se negativo, então se procede secamente a liberação sem
pedir desculpas.
Praticamente
todos os sábados Ezequiel tinha o dissabor de ser abordado. Inicialmente
contava para os pais, que logicamente ficavam revoltados, tentavam achar uma
solução, telefonavam aos outros filhos e generalizava um mal estar, sem uma
solução visível. Os policiais se revezavam, não havendo uma ronda fixa que
pudesse ser alertada de quem se tratava, não havia meios de sair da loja no
horário de fluxo e, a opção de ir de bicicleta também não resolvia que a
triagem era tanto para quem andasse a pé como de duas rodas.
Com o
tempo o jovem parou de contar, só relatando os repetitivos incidentes quando
acionado.
Em um
feriado prolongado ao ir ao encontro dos amigos foi parado por duas vezes,
altamente constrangido continuou a caminho do ponto de ônibus. Foi quando
chegou uma terceira viatura e novamente foi parado. Educadamente, como era seu
feitio alegou ao policial que era a terceira vez no trajeto. Este truculento,
sem nenhuma consideração desferiu-lhe uma bordoada alegando desacato e por
pouco não o levou a delegacia. O rapaz voltou para casa chorando de raiva. Não
quis ver os amigos e tampouco contou aos pais, para não aumentar o ódio.
A
PSICOLOGA
Após
este dia não mais foi encontrar com os amigos, fazia suas atividades normais
durante a semana e aos sábados recolhia-se a seu quarto escutando música.
Os pais
estranhando as reações do filho ficaram preocupados. Indagavam sobre o que se
passava, mas o Ezequiel não queria tocar no assunto e se fechava mais ainda.
Conversaram com os filhos, amigos e até pesquisaram na internet.
A
família chegou à conclusão que na melhor das hipóteses o filho estava com
Síndrome do Pânico, podendo ser até uma Esquizofrenia, escrita bem clara na
página do computador, retraimento e isolamento no quarto.
Levar a
um psiquiatra não estava nos planos, o filho não era louco, pelo menos Dona
Cleide não admitia, foi quando Gisele a irmã do rapaz sugeriu a Maria de
Lourdes.
Esta
moça, da mesma idade da irmã, que pegava junto a esta condução para a faculdade,
formou-se em psicologia. Teve sucesso, atualmente está lecionando na Faculdade
e tem consultório na região do comercio. Além de ser de confiança, conhecia a
realidade do local.
Após
atender por três vezes o rapaz concluiu tratar-se de simplesmente medo e raiva
e não doença. Amiga da família, ficou pensando como poderia ajudar. Foi quando
lembrou dos filhos do Senhor Justino.
Os
filhos do Justino faziam tratamento com ela por mal rendimento escolar e
agressividade, no fundo não eram maus rapazes. O pai havia mudado para a
Comunidade na mesma época e trabalhava em uma grande empresa com cargo
importante. Estava muito bem de situação econômica e por todos aqueles anos
nada desabonava sua conduta. Seus filhos estudavam na mesma escola que
Ezequiel.
Sugeriu
para o rapaz que fossem juntos até o ponto de ônibus, mesmo sendo de grupos
diferentes: eles do grupo dos bagunceiros e ele dos estudiosos, ir junto até o
ponto em nada atrapalhava. Afinal, os cabelos loiros dos irmãos, uma altura
avantajada para idade não atraia a atenção dos policiais.
Ezequiel
não se mostrou animado com a proposta, o que Maria de Lourdes imaginou que este
estaria inibido com a diferença de apresentação física, sendo normal o menino feiinho ficar complexado diante de dois rapazes que chamavam atenção das
meninas. Conversou com os pais de Ezequiel.
Estes acharam
ótima ideia, falaram com o Senhor Justino que solicitamente achou ótimo, afinal
uma ou outra vez que voltar pode ficar complicado pelas horas ou chuva poderiam
revezar para buscar os rapazes. Bastava combinar a hora que iriam sair e o
deslocamento até a casa do outro. Estava resolvido.
O
DESFECHO
Por
alguns meses a estratégia deu certo, geralmente Ezequiel ia até a casa dos
vizinhos, de lá iam ao ponto do ônibus sem contratempos, até que:
Em um
dos dias combinados a polícia invadiu a casa do Senhor Justino, havia uma
denúncia. Fizeram uma batida e no escritório que o mesmo mantinha trancado
encontraram farto material de produto de roubos.
Este
senhor pertencia a uma quadrilha e, os objetos de valor, joias, relógios de
marca, obras de arte eram levados a seu escritório e aproveitando a posição
relativamente boa em uma grande empresa, podia negociar com tranquilidade. Um
dos elementos do bando foi preso e indicou o esquema.
Ezequiel
foi preso junto, permanecia à disposição do Juizado de Menores, não antes de
levar umas bordoadas. Estava sendo acusado de pivete, ou seja, de fazer
pequenos serviços a quadrilha e dado seu pequeno porte entrar nas residências
por vitros ou telhados, abrir as portas sem necessitar arrombamento, afinal
além de feio tinha o porte ideal para tanto.
Deu
bastante trabalho para seus irmãos provarem que nada tinha a ver com isto.
22/09/14
Tony-poeta.