O SANFONEIRO CEGO
Era uma quarta feira, estava atendendo os pacientes da Pericia
Médica na Rua Campo Salles; como de costume chamava os doentes, os periciava
seguindo a ordem das fichas:
- Severino Souza, pode entrar.
Entrou um senhor de 58 anos, cego, acompanhado de uma senhora
que se identificou como filha: a Lourdes.
- Pois não, qual a doença do Seu Severino?
- Ele é cego.
- Desde que idade está cego? São as perguntas habituais que
iniciam uma pericia.
- Desde muito jovem, teve uma doença.
- E ele trabalhava em que?
- Tocava sanfona.
- Há quanto tempo paga o INPS? Sempre se imagina que possa haver uma
tentativa de burlar a Previdência e, quem nunca trabalhou pague um ano e tente
se aposentar.
- Há doze anos, respondeu a filha.
- Sempre tocando sanfona?
- Sim, sempre tocou sanfona.
- Não tem outra doença?
- Não, só é cego.
- Lourdes, se sempre tocou sanfona cego, pela cegueira não
posso ajuda-lo.
- Doutor, ninguém mais está contratando sanfoneiro, hoje só
querem aquelas musicas barulhentas, e com o K7, muita gente que contratava
sanfoneiro para as festas, agora põe a fita. Quando contratam alguém é para
tocar discoteca, não chamam sanfoneiros. Nisto Lourdes estava com os olhos
cheios de lágrimas, mas não fazia escândalo, nem simulação. Dava para se notar
que havia sinceridade.
-Doutor, sou honesto, falou Severino, sempre paguei ao INPS,
pois sei que como cego ia ter dificuldade. Mas estou com dois netos em casa,
minha mulher toma uma porção de remédios e faz três meses que não arrumo
nenhuma festa para tocar. Está muito difícil. Não estou conseguindo pagar as
contas. Falou firme, mas aflito.
Pensei por um curto período de tempo, realmente precisava de
ajuda, mas teria que ser dentro da lei.
-Sempre foi totalmente cego, Seu Severino?
- Não, antes só enxergava vultos, mas de um tempo para cá
nem isso.
-Quando foi no oculista a última vez?
-Faz uns três anos respondeu a filha.
- Foi pelo INPS? Foi aqui em Marilia? Perguntei.
- Sim, foi aqui.
Pensei comigo, um agravamento registrado e um laudo do
médico atestando, dá para se tentar ajudar o sanfoneiro.
- Faz o seguinte Lourdes, vai até o INPS, fala com Dr. Simão
que é o chefe, pede para ele arrumar uma guia para o mesmo medico de vista da
ultima consulta. Procura o nome dele em casa.
- Quando passar na consulta, explica para que é o atestado
que você vai pedir, e pede para o doutor colocar o CID da doença. Esta meio difícil,
mas vamos ver se dá para ajudar. Quer que eu escreva o que fazer?
- Não, não precisa doutor, entendi direito.
- Vai filha, e quando tiver tudo em mãos, volta. Vou deixar
a pericia em aberto. É só me procurar.
Dez dias depois pai e filha voltaram.
- Trouxe o atestado? Perguntei
- Sim, falou Severino.
- Vejamo-lo:
O atestado mostrava o grau de visão de há três anos, data
correta da última consulta e o atual, apesar da pequena diferença, mostrava
agravamento. O CID estava colocado e o oftalmologista colocou uma observação,
já que sabia a finalidade:-
Sério agravamento da visão, podendo considera o doente com
cegueira total no presente exame.
Se a variação de grau não era significante, a observação era
conclusiva e juridicamente amparada. Nestes casos, que fogem o habitual, costumávamos
chamar o Perito Chefe ou o Coordenador, antes de dar a conclusão final. O
Coordenador esta a disposição. Chamei Dr. Gustavo Godoi. Ele entrou.
- Severino! Você ainda toca o baião?
- Toco sim, Doutor.
O Dr. Gustavo era uma pessoa que gostava de comer bem, beber
uma boa bebida e escutar boa música e, conhecia o Severino de algumas festas.
Expliquei-lhe o motivo. Ele olhou o atestado e falou:
- Pode dar andamento que assino e peço para o Dr. Aurélio
assinar também. Com cegueira total, cada vez que perder a posição, vai ter uma
enorme dificuldade de posicionar as mãos novamente. Não dá para um
profissional.
O Senhor Severino teve direito a Auxilio Doença, que é como
começa todo Beneficio por doença e, após receber seu dinheiro por dois anos,
foi aposentado definitivamente.
Comentário: Hoje um caso assim só conseguiria receber a
aposentadoria por via judicial e depois de anos de espera; isto se
sobrevivesse. A informatização da Pericia, quebrou totalmente a autonomia do médico
e igualou as demandas dentro do sistema. Os casos particulares: cabe apenas a
Justiça e sua fila, que só aumenta. A
melhoria tecnológica, com seu formidável avança, trata de números. A doença não
é o numero do CID e o médico, muitas vezes tem de intervir para que aja
justiça. A confiança total na ciência, desprezando o elemento humano é um erro,
que cedo ou tarde terá de ser corrigido. Até lá, os doentes que mais necessitam
arcarão com os sacrifícios e privações impostos pelo sistema não humano.
07/10/12
Tony-poeta