sábado, 5 de novembro de 2011

A NAMORada. [crônica.]







Jonas arrumou uma namorada. Já entrava na casa e conhecia sogro e sogra. Com certeza ia se enforcar. Esta era a novidade que em inicio dos anos sessenta corria no Nações Unidas. Toda a turma o olhava com ar de curiosidade e inveja.

O Edifício Nações Unidas foi construído nas esquinas da Av. Paulista com a Av. Brigadeiro Luis Antonio. Nesta parte nobre da cidade um prédio majestoso de pelo menos dez blocos de apartamentos, com entrada privativa para empregada e uma gigantesca garagem, era o sonho da classe média, com poder aquisitivo mais elevado.

No acesso ao prédio, que possuía um corredor paralelo a Brigadeiro, onde tinha acesso aos apartamentos e varias lojas modernas. Havia vida própria. Na Padaria

Arcadas, a turma se reunia.

Era um pessoal, que variava de dezesseis a vinte anos de idade. Moradores do edifício ou estudantes das escolas que existiam em bom número na região, Os de família com mais posse pouco iam, mas se consideravam do grupo, e a freqüência ia aumentando conforme diminuía a posse, de modo que os mais pobres se encontravam todos os dias. Todos eram considerados de classe média.

Neste grupo não havia mulheres. O tabu da virgindade era rigoroso e as moças só saiam acompanhadas da família ou iam aos clubes, festas ou locais fechados que os rapazes de menor posse não tinham acesso. Daí a reunião continua onde conversavam, quando possível tomavam uma cerveja, fumavam, pois era sinal de emancipação e ficavam imaginando como seria o convívio social com o outro sexo. Jonas apesar de não ser do grupo assíduo freqüentemente estava com o pessoal, o que aguçou a curiosidade.

Conversando com o Poeta, freqüentador local, contou que o pai de sua namorada, muito rico, morava quase em frente ao Jockey Club criava cavalos e ocasionalmente comentava o cavalo que ganharia a corrida. Gabava-se de não errar, o que era verídico.

Bolaram um plano, quando o futuro sogro indicasse, Jonas, o Poeta o Topete e o Serjão dois amigos presentes iriam juntar os trocados e fazer a aposta; não comprometendo Jonas com jogo, que era mal visto, mesmo por um criador.

Havia um problema, o Jockey precisava de quatro ônibus, ninguém tinha carro e todos estudavam de noite no horário das corridas. Foi à hora que se lembraram do Foguinho, trabalhava no Club. Poderia aproveitar a dica, e fazer o joguinho da turma. Ninguém tinha grandes quantias para apostas. Se o ganho fosse suficiente para pagar ao cinema já estava bom.

Foram conversar com Foguinho, este gostava de se exibir, foi de cara falando que também recebia palpites, começou a colocar obstáculos, até que por fim propôs:

-Estou namorando a neta de um grande poeta. Lá todo mundo é culto e tenho que demonstrar que não flauteei na escola, Se você Poeta escrever poemas para Noêmia eu topo.

Acordo feito. Vieram os palpites do sogro de Jonas, o Poeta fez um acróstico, Foguinho se exibiu para a família da namorada e ainda triplicaram o capital aplicado.

O Poeta se entusiasmou:- um grande poeta lendo minhas poesias e ainda ganhando dinheiro. Quem sabe ele me apresenta para os editores e divulgo minhas poesias?

Deu certo por alguns meses, chegou até a formar uma rotina, mas como todo namoro houve uma crise e o Poeta foi envolvido. Jonas se afastou.

Acabou o dinheiro para o cinema, Todos continuaram a vida. O Poeta não conheceu o escritor famoso, nem ao menos soube se este realmente leu sua obra e, nem que fim levou os mais de vinte acrósticos com o nome Noêmia.








sexta-feira, 4 de novembro de 2011

VIVER E CANTAR.






Cantar os cantos das cantigas cândidas

Eis a sina do poeta sonhador.

Cantar as coisas das correntezas coloridas

Eis a sina daquele que quer viver.



Corre...

Corre correnteza cantarolante.

As cantigas nas canduras

Valem sonhos.



Sabes o que é sonhar?

É estar vivendo dormindo

Navegando no rio da realização.

Canta...

Canta...

Canta a cantiga corrediça

Canta o canto do viver.



Viver é antes de tudo

Sonhar, no entanto

É estar nas brumas,

Viver no céu

Até a hora

De despencar para a terra.





30/03/1972




quinta-feira, 3 de novembro de 2011

PROJETOS DE VERÃO





Vou a outros mares

Trazer novas conchas

Que rodopiam nas vagas

Banhadas dos ares

De novo verão.



Na meia estação

Guardado nos olhos

Semi consciente

Como um borrão,

As praias opacas...

Frias... Plangentes

Onde fugidias

Brincavam sereias

Que logo fugiam

Da areia.






NÃO VAI, NÃO. MEU FILHO.





Começo de carreira, ano de setenta e cinco. Como não estava ainda implantada a Residência Médica no Brasil, comecei a trabalhar na Santa Casa de Marília. Após dois anos de trabalho, com enfermaria e Fundo Rural, poderia ser admitido no Corpo Clinico o que equivalia na época a uma Residência.

Meu trabalho consistia em atender os leitos que não tinha médico responsável, e exceto

Ortopedia que já tinha serviço, o restante das internações era Clinica Geral, incluindo cirurgias simples.

O grupo médico era bastante fechado, fui convidado para participar pelo Dr. Erico Cardeal, Diretor Clinico.

Tinha, devido esta característica local, toda liberdade de consultar e discutir com os colegas mais velhos, minhas dúvidas.  Tinha auxilio nas cirurgias que participava, que junto com o Fundo Rural, onde recebia uma verba, ajudava, na verdade me mantinha, monetariamente sem grandes dificuldades.

Já estava, nesta ocasião, com quase um ano de trabalho, confiante com um bom traquejo. Pelo menos achava que estava, lidando bem com a medicação existente, aliás, muito precária. Não havia sido descoberta boa parte da medicação hoje existente; os exames tanto de laboratório como de imagem ainda engatinhavam.

Chegando certo dia de manhã, visitei Da. Judith. Internada de madrugada com diagnóstico de Cardiopatia Chagásica. Era uma senhora negra. Mãe de Santo na região. Estava muito inchada, dormindo sentada, com falta de ar intensa que atrapalhava até a fala. Vi os exames, só dispúnhamos na época de eletrocardiograma e raio-X. Tomei a conduta, diuréticos, digitálicos e dieta rigorosa. Costumava dar certo. Hoje teríamos outra conduta, com outra medicação e com resultado muito diferente.  Prepotente, como todo profissional iniciante, e crendo muito em mim mesmo, conformei a paciente dizendo que iria ficar boa, e curá-la.

-Não vai não, meu filho! Respondeu sorrindo, e acrescentou

-Vou morrer.

Encarei até como desafio. Revi o que dava para rever da medicação, solicitei uma revisão dos clínicos mais antigos e parti para a contenda.

Mas a paciente não evoluía bem. Passava duas visitas por dia, como era habito na época. Pouco a paciente urinava e desinchava. Chamei outros colegas, não dispúnhamos de mais medicação, mas ainda insistia:

-Vou te curar, Da. Judith.

-Não vai não meu filho, vou morrer e dava um sorriso.

Após alguns dias na mesma ladainha, Da. Judith morreu.

Com ela morreu toda minha prepotência de aprendiz.

Comecei entender que além da ciência, muito pouca coisa sabemos de nossa existência...












quarta-feira, 2 de novembro de 2011

ALIENAÇÃO





Vida engraçada...

Não ser

É viver...

[Quem sabe?]

É sorrir

Sem saber.





16/03/1972

domingo, 30 de outubro de 2011

O REVÓLVER.





No ano de setenta e três começamos o real contato com doentes. Era, apesar de acompanhados por preceptores, um motivo de orgulho e ansiedade. Estávamos na disciplina de dermatologia. O estágio era composto por: um preceptor e um grupo de oito estudantes. O atendimento era feito num consultório amplo, o que permitia um bom exame dos pacientes. Era claro e bem iluminado, como exige a especialidade.

Cada doente que chegava, era encaminhado a um biombo, onde ficava de roupas intimas para permitir um exame completo. A princípio me ocorreu certa apreensão. Naquela época a exposição do corpo era incomum, e a sexualidade era privada causando vergonha nas moças e senhoras. As mulheres de mais idade, muitas vezes morriam de câncer, por se recusarem a expor suas partes intimas ao ginecologista; mesmo que fosse de sexo feminino. Acreditei que o sexo feminino teria dificuldade de desfilar em trajes íntimos para oito ou dez homens. Meu grupo só tinha homens e na turma daquele ano havia apenas quatro alunas. Enganei-me. Não tivemos problemas.

Após alguns doentes chegou um senhor entre trinta e quarenta anos, típico caipira, com bigode, botas, colete e arrastando os erres. Tinha pouca expressão facial e olhar atento a tudo que acontecia. Sentou-se. O motivo da consulta era uma “ferida na perna que não sarava”, Pedimos que fosse despi-se.  Pediu para deixar alguns objetos na nossa escrivaninha, o que concordamos.

Sr Joaquim, era o nome dele, colocou sobre a escrivaninha a carteira, o rolo de fumo, a faca de cortar o mesmo, de um tamanho razoável, e seu revólver. Não era habitual o uso de revólver na região; apesar de inicialmente chamar Alta Floresta, depois é que mudou para Marília. As florestas tinham se tornado culturas e não mais existiam. Ficamos desconfiados, mas continuou o atendimento.

O doente apresentava um corte não cuidado na perna, que se tornou uma úlcera pequena de fácil resolução, com cuidados e banhos de Permanganato: sendo um envelope diluído em quatro litros de água previamente fervida e aplicam-se vários banhos diários.

Vestiu-se, foi bem explicado o procedimento, como de costume para uma aula demonstrativa. Foi embora.

Após quinze dias, eis Sr. Joaquim de novo, reclamando que piorou. Não mandamos que se despisse, apenas que tirasse a bota para verificarmos a situação. Realmente estava pior, onde havia a úlcera agora tinha uma queimadura. Aventamos a hipótese de ser a medicação e perguntamos como esta foi usada:

-Ora, coloquei quatro envelopes no litro de água, como os senhores falaram e, banhei o dia todo.

Confesso que com medo observamos: - Era um envelope para quatro litros, queimou pela medicação.

Sr. Joaquim olhou de rabo de olho, deu um sorriso de lábios cerrados, o primeiro que vimos nos dois atendimentos. Falou:

-Fiz errado.

Demos orientação do novo procedimento, ele se despediu e foi embora. Creio que sarou, pois ele e seu revólver nunca retornaram.