Adroaldo
estava na delegacia esperando sua vez. O Maestro, esta é a profissão deste
senhor já aposentado, teve seu carro roubado e ia registrar ocorrência; mesmo
não tendo esperanças de encontra-lo. Era um carro velho, com mais de dez anos
que usava para lecionar música em um conservatório particular, onde completava
a sua magra aposentadoria. Junto com este trabalho, uma ou outra aula de piano
que ministrava em sua residência completavam seus ganhos modestos.
Ao chegar
sua vez se deparou com Souza, seu vizinho há anos, com quem pouco conversava,
apenas: Bom Dia! Ou Boa Tarde!
-
Maestro, o que aconteceu?
-Roubaram
meu carro.
- Pelo
ano, foi para as quadrilhas de desmanche, ninguém acha... mas, vamos fazer o
Boletim de Ocorrências. Quem sabe o senhor tem sorte.
- Por
favor Professor os documentos...
Souza
começou a datilografar na velha Remington da delegacia, ainda não
informatizada. O Maestro foi fornecendo a Rua, Hora, Local e demais informações
que rapidamente eram passadas ao papel com uma destreza impressionante do
escrivão. Adroaldo só olhava.
- Seu
Souza, o senhor digita sempre assim?
- É a
pratica Maestro, quinze anos com esta máquina eu e ela nos casamos, falou
sorrindo.
O
Maestro começou a pensar: Coordenação perfeita de visão, cérebro e dedos.
Impossível que não consiga tocar o piano. Tem tudo que é necessário.
- O Sr.
Não quer aprender a tocar piano, Seu Souza?
- Eu?
- Sim,
a coordenação é perfeita para o instrumento.
- Mas
não entendo nada das músicas que o Senhor toca, escutamos em casa. É bonito,
Mas destas, o meu pessoal só conhece aquela assim e solfejou com dificuldade
uns acordes.
- É o
Bolero de Ravel, esta é bem conhecida.
- Sim
professor, de resto só escuto as músicas do rádio...
-
Porque não tentar? Vizinho.
- Sabe,
ganho mal, com três filhos não dá.
- Não
vou te cobrar nada, não cobro de quase ninguém na comunidade.
-
Sabemos, o Senhor já tirou muitas crianças da rua, comentamos sempre aqui...
- Sabe
professor, aceito.
Combinaram
os dias e se iniciaram as aulas. As partituras de ensino eram copiadas dentro
da delegacia; o aluno era aplicado e até conseguia treinar no piano da Igreja,
onde um dos Pastores era seu primo.
Certo dia
Souza chega com uma partitura de uma música que fazia sucesso na rádio.
-
Professor, vê se está certo.
Tocou
conforme o impresso corretamente, mão direita e esquerda sincronizadas, pausas
e tempos corretos.
- Está
perfeito! Bem de acordo com o arranjo.
- Sabe:
falou o Souza, na rádio sai mais sons do que toco aqui, não entendo?
- É o
acompanhamento amigo, a mão esquerda permite o floreado.
- Como
é isto, professor?
- São
notas afins que fazem o acorde. Supondo este Do, podemos usar mais dedos e
colocar o Mi e o Sol, daí fica cheio o som.
-
Entendi, onde aprendo isto.
- É uma
relação matemática, cada nota é harmônica com outras, é possível até fazer o cálculo.
- Onde
encontro isto?
-- Este
livro, pegou na prateleira, ensina tudo.
- O
Senhor me empresta?
- É
muito adiantado para começo, mas leva e vê se entende.
Semana
seguinte o escrivão abriu sua partitura e mostrou o avanço ao Maestro. A mão
esquerda fazendo os acordes dentro do tempo, mesmo repetitivos ficou bom.
- O
Senhor aprendeu rápido Seu Souza.
- Meu
primo, o Pastor, me ensinou como fazer as contas do livro. Acho que aprendi,
anotei e ficou assim.... mostrando a partitura com acompanhamento todo anotado
a mão e com destaques.
-
Exato, é isso mesmo, podemos variar mais, mas assim está bom, mais para frente
o Senhor aprende.
As
aulas continuaram, o escrivão tinha realmente coordenação, avançava lentamente,
não entendia os clássicos que começavam a ser ensinados nas peças mais simples.
Certo dia o aluno chega com algumas partituras na mão.
- Está
estudando por conta própria?
- Estou
sim, já aprendi estas aqui. Mostrou algumas músicas populares, com as anotações
manuais de acompanhamento.
- Deixa
eu ver.
- Os
acordes da mão esquerda são repetitivos, cada Do segue esta sequência e assim
por diante, mas vamos ouvir.
- É
exatamente o que queria ouvir do Senhor.
Tocou três
músicas sem erros.
-
Leitura perfeita Seu Souza.
-
Professor, para meu gosto aprendi. Não vou conseguir tocar clássicos, não tenho
conhecimento para isto, coloca alguma criança no meu lugar. Sou eternamente
grato. Fico muito feliz por conseguir tocar mais ou menos o que toca na rádio.
-
Adroaldo tentou convencê-lo a continuar, mais não tinha jeito, Souza estava
feliz e achava que aquele ponto estava ótimo para ele.
Passados
alguns meses Souza vai à casa do professor e o convida a ir no sábado na
Cantina do Piola, uma cantina movimentada e muito bem frequentada. O Maestro
aceitou intrigado.
Dia
marcado Adroaldo sentou numa mesa próxima do piano.
As Pizzarias
são lugares agitados e barulhentos, coisa que ninguém explica. De onde estava
poderia ouvir seu ex-aluno tocar. Pediu um vinho, uma Pizza.
Souza
já estava tocando. O piano tinha um calhamaço de partituras; o garçom levava
pedidos escritos de músicas dos frequentadores e a música corria alegre, ora
tarantelas, ora música popular. Souza era aplaudido ao final de cada peça.
O
Maestro reparava atentamente, o ex-aluno tocava bem mais solto que nos tempos
que ia as aulas, deve ter treinado muito e o contato com o público deu
certamente mais confiança. O dinheiro extra que recebia no estabelecimento, por
certo ajudava na sua vida familiar, porém alguma coisa não o satisfazia.
Depois e
muito pensar, percebeu que por mais diferente que fosse o gênero ou o ritmo
tudo seguia como um batalhão marchando. Era isto! Como uma pessoa treinada para
prender, num ambiente pesado onde ficou por toda a vida, onde se lida com a
tragédia e o castigo poderia variar? Certamente seria uma exceção.
A vida
levara seu aluno a um continuo de guerra, a música transmitia isto a seu ouvido
treinado. Jamais teria prazer em tocar um clássico, tinha talento, tinha certa
técnica, mas continuava batendo no teclado da máquina, com perfeição. Podemos
criar ótimos técnicos, não virtuoses, estes nascem dotados e a vida encaminha.
O piano
nesta hora parou, Souza se dirigiu aos frequentadores:
- Tenho
a honra de recepcionar o Maestro Adroaldo que ensinou tudo que sei. Peço que
ele nos dê a honra de tocar para nós o Bolero de Ravel, que todos gostamos.
O
Mastro sentou ao piano e delicadamente começou a dedilhar a música, todo alegre
e vaidoso.
13/07/14
Tony-poeta
-
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