sábado, 15 de outubro de 2011

A PSICOSOMÁTICA DO IDOSO [artigo poético]





A doença é a ausência do objeto.

O menino adoece pela perda de seu cachorro, e este adoece pela ausência de seu dono.

Pergunto: Quantas perdas têm o idoso?

Tem a perda da voz, a sonora, a da visão límpida, da destreza das mãos; do desembaraço do andar; de seus pais, irmãos, amigos; de sua independência; de sua individualidade; da auto satisfação, da auto emancipação e por aí à fora.

Sobraram-lhe seus objetos apenas. Velhas relíquias muito valiosas que preenchem uma ausência. Cada perda lhe é compensada num objeto, sendo que, nós com toda nossa racionalidade, chamamos mania! Cada fato é relembrado, recordado, novamente repetido com medo que se perca completamente e não existam objetos para substituí-los: Fecha a porta que tem ladrão! E o chamamos ranzinza e não conseguimos ver que o ladrão está lá, entrando, roubando-lhe uma recordação. E se preocupa, se esquece, se lembra... Torna a esquecer. Cadê meu chaveiro azul? Cadê meu chaveiro azul? Cadê meu chaveiro azul? Dizemos: está esclerosado! Não vemos que fala das chaves de suas lembranças.



Pouco a pouco, por não ser entendido, afasta-se de nós. E, nós? Ah! Nos também não entendemos e afastamo-nos. Conversar o quê? Para nos contar que fulano morreu? Isto não interessa! Ele está ranzinza, esclerosado, maníaco, um chato! Este é o inicio da doença. É a perda do objeto.

O coração já fraco pela idade enfraquece mais ainda pela perda da vontade. O rim se cansa de eliminar sua urina e a próstata em rebelião fecha a passagem. O pulmão não quer mais o ar e o intestino recusa-se a eliminar seu interior.

Os especialistas se sucedem. –Se não se entende a idade, que se entenda a doença. E em fórmulas magistrais comercializadas: Digoxina, Lasix, Diabinese, Hydergine, Nootropil, Diazepan e muitas outras, todos se reúnem: família, médicos, medicamentos e ausências. As pílulas mágicas transformam-se, na tentativa de reintroduzir as ausências e a família angustiada, desesperada e impotente, é simbolicamente ingerida com elas. Tudo em vão.

Neste quadro todo faltou uma presença apenas: A palavra. Não a palavra dos familiares atônitos e desorientados diante da doença; não a palavra do especialista, técnico em aparelhos específicos, mas uma palavra além das formulas magistrais: A palavra do entendimento das dores, da presença que pode preencher a ausência que vem de fora, de um ser que sue saiu do nada, que apenas surgiu por mágica para integrar os cacos das parcas recordações restantes e, simbolicamente, transformá-las num objeto palpável, num talismã que lhe eleve o tronco, aumente seu horizonte e lhe firme os passos.





Publicado na Gazeta de Santo Amaro (São Paulo – SP)

Sábado 04/05/1991








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