quinta-feira, 3 de novembro de 2011

NÃO VAI, NÃO. MEU FILHO.





Começo de carreira, ano de setenta e cinco. Como não estava ainda implantada a Residência Médica no Brasil, comecei a trabalhar na Santa Casa de Marília. Após dois anos de trabalho, com enfermaria e Fundo Rural, poderia ser admitido no Corpo Clinico o que equivalia na época a uma Residência.

Meu trabalho consistia em atender os leitos que não tinha médico responsável, e exceto

Ortopedia que já tinha serviço, o restante das internações era Clinica Geral, incluindo cirurgias simples.

O grupo médico era bastante fechado, fui convidado para participar pelo Dr. Erico Cardeal, Diretor Clinico.

Tinha, devido esta característica local, toda liberdade de consultar e discutir com os colegas mais velhos, minhas dúvidas.  Tinha auxilio nas cirurgias que participava, que junto com o Fundo Rural, onde recebia uma verba, ajudava, na verdade me mantinha, monetariamente sem grandes dificuldades.

Já estava, nesta ocasião, com quase um ano de trabalho, confiante com um bom traquejo. Pelo menos achava que estava, lidando bem com a medicação existente, aliás, muito precária. Não havia sido descoberta boa parte da medicação hoje existente; os exames tanto de laboratório como de imagem ainda engatinhavam.

Chegando certo dia de manhã, visitei Da. Judith. Internada de madrugada com diagnóstico de Cardiopatia Chagásica. Era uma senhora negra. Mãe de Santo na região. Estava muito inchada, dormindo sentada, com falta de ar intensa que atrapalhava até a fala. Vi os exames, só dispúnhamos na época de eletrocardiograma e raio-X. Tomei a conduta, diuréticos, digitálicos e dieta rigorosa. Costumava dar certo. Hoje teríamos outra conduta, com outra medicação e com resultado muito diferente.  Prepotente, como todo profissional iniciante, e crendo muito em mim mesmo, conformei a paciente dizendo que iria ficar boa, e curá-la.

-Não vai não, meu filho! Respondeu sorrindo, e acrescentou

-Vou morrer.

Encarei até como desafio. Revi o que dava para rever da medicação, solicitei uma revisão dos clínicos mais antigos e parti para a contenda.

Mas a paciente não evoluía bem. Passava duas visitas por dia, como era habito na época. Pouco a paciente urinava e desinchava. Chamei outros colegas, não dispúnhamos de mais medicação, mas ainda insistia:

-Vou te curar, Da. Judith.

-Não vai não meu filho, vou morrer e dava um sorriso.

Após alguns dias na mesma ladainha, Da. Judith morreu.

Com ela morreu toda minha prepotência de aprendiz.

Comecei entender que além da ciência, muito pouca coisa sabemos de nossa existência...












Nenhum comentário:

Postar um comentário