ABORTO E A SOCIEDADE
A Sra. M., uma mulher de trinta e cinco anos, bonita, viúva
e mãe de duas adolescente procurou-me. O ano era 1976. Apresentava agitação e
muita angustia. Estava grávida. Na época que ainda se exigia a virgindade para
casar, ela como viúva e grávida, com filhas adolescentes entrara em desespero.
Teria que fazer um aborto sem que ninguém soubesse para proteger o núcleo
familiar, sob sua responsabilidade.
O motivo da consulta era não a orientação médica específica,
mas para ver se poderia informa-la onde era possível interromper a gravidez,
solicitação que como clinico não saberia informar. Na sociedade tanto a mulher
que parte para este procedimento, quanto o profissional que o realiza fica mal
visto no meio médico e social sendo sumariamente isolado.
Diante das circunstancias da época, acreditei serem justas
as reivindicações da senhora, e mesmo não conseguindo ajuda-la, nem em uma
simples indicação fiquei com o tema martelando em minha cabeça, na duvida entre
o que me foi passado como profissional e como era a vida fora dos ensinamentos
acadêmicos. Nunca mais tive contato com esta paciente. Possivelmente ela
conseguiu seu intento em alguma clinica que o realizava clandestinamente. A
curetagem é um procedimento fácil, possível fazer sem grandes recursos
técnicos.
Atualmente o aborto continua em discussão, se é que podemos
considerar uma discussão, já que permanece proibido por lei com penas de
prisão, inclusiveda mulher que aborta. É
realizado clandestinamente, tanto em determinadas clinicas particular, onde não
é ventilado nem para outros médicos, mas com alguma segurança, ora em mãos de
aborteiras sem preparo, com métodos arcaicos e de alto risco para a mulher; ou
ainda em desespero dentro na própria casa com introdução de agulhas de tricô no
útero, colocação de determinada alga que dilata o colo do mesmo, ou ainda com a
ingestão de comprimidos abortivos e colocação simultânea na vagina. Dando
inicio a expulsão do feto, que será, ou não, completada num Pronto Socorro, com
risco real de perfuração do útero e de infecções sérias que podem levar a
óbito.
A idade da mulher atualmente é estatisticamente entre os 20
e 25 anos, geralmente já tiveram filhos, tem dificuldades econômicas reais, e o
abandono por parte do parceiro frequente, ou seja, uma situação social
altamente vulnerável, transformando o aborto num problema social muito mais que
um ato de anticoncepção. Muito poucas mulheres fariam o aborto se as condições
fossem diferentes; pois elas também são sócio culturalmente contra o aborto; o
que as leva a procurar o ato extremo, incompatível com seus princípios é
semelhante a Sra. M. é um ato de proteção a família, na maioria das vezes.
O numero de abortos no Brasil é estimado em um milhão ano,
com duzentos e cinquenta mil complicações, conforme o DATASUS e, aí mais
alarmante um óbito a cada dois dias, o que o classifica como um problema de
saúde pública a ser resolvido urgentemente.
A maior pressão no Brasil e, também no resto do mundo é
exercida pelos grupos religiosos, sob a alegação que o feto tem vida a partir
da concepção, concluído que estamos tratando de um assassinato. Interessante
notar que excetuando o espiritismo, que fala claramente contra o aborto em um
de seus livros, esta alegação vem dos pregadores, não da base religiosa do
profeta, que é lacônica sobre o assunto. Na verdade o problema religioso
torna-se deste modo muito maior.Ao mesmo tempo em que o pastor que efetuando um
trabalho de ressocialização em presídios, uma ação, diga-se de passagem, necessária,
exclui mulher que aborta de sua comunidade sem nenhuma chance. Olhando-se do
ponto de vista sociológico, o Pastor como portador da palavra do profeta, diante
de uma transgressão desta, que foi dada por sua exclusiva interpretação, não
pode atribuir a falha as escrituras, pois lá não se encontram.
Tem as opções atribuir a si mesmo a falha, correndo o risco
de ficar desacreditado na comunidade por não transmitir direito os
ensinamentos; ou atribuir esta falha a todogrupo religioso por ignorar o estado
de abandono em que a mesma se encontrava, sem ser notada por ninguém, isto é,
penúria material e psicológica e, lidar com uma agitação interna de toda a
comunidade que tentará se eximir da culpa, o que faz esta via ser de difícil
manejo.
Assim, a opção segue
outro sentido e se culpa a mulher já fragilizada, numa atuação hipócrita,
responsabilizando-a por todos antecedentes que lhe causaram a angústia do
momento e proíbem-na de praticar o aborto, caso não tenha feito, isto sem
apresentar qualquer solução. Em contrapartida se este já estiver consumado é
praticamente expulsa de seu meio. Um perverso somatório de culpas, com efeitos
graves na vida da mulher, onde perde o possível filho e perde a graça de um
deus em que ela acredita.
O grupo principal para uma liberalização do aborto, que ora
se discute são os profissionais da área da saúde; incluindo aí médicos,
enfermeiras e auxiliares de enfermagem, assistentes sociais e psicólogos. A
formação da maioria destes profissionais, geralmente de classe mais abastada, é
contra o aborto e tem repulsa por ele. Há inúmeros relatos da paciente chegando
ao serviço com sangramento e em expulsão, que ficam isoladas, com espera de
socorro acima do necessário, sem nenhum dialogo com pessoalresponsável pelo atendimento
e, em alguns casos descritos na literatura, a curetagem é feita sem
anestésicos, altamente dolorosa, no intuito claro de “castigar” a criminosa que
se submete a tal ato. A repulsa é real e de formação acadêmica. As clinicas que
porventura façam aborto, o sigilo é exigência tanto do ponto de vista jurídico,
como do ponto de vista do grupo profissional, pois todo aborteiro é isolado da
comunidade médica.
Como não há serviço de aborto sem pessoal médico, é
necessário um trabalho bem elaborado sobre o tema, preferencialmente por alguma
Universidade confiável, para convencer os profissionais que: Estão realizando
um ato médico necessário e não um ato contra a moral. Sem este acerto não é
possível pensar em liberação.
Temos ainda o ponto de vista jurídico, a mulher que aborta,
se denunciada, é criminosa e responde a processo. Por outro lado está em
tramites para aprovação a Lei do Nascituro. Esta lei, tramitando por pressão
religiosa, dá ao feto todos os direitos, o que fatalmente se chocará com a
liberdade da mulher, dona que deve ser do próprio corpo, de modo que, este
embrião, este ser que é ainda uma possibilidade de vida e cientificamente se
considera um corpo estranho na mulher, não poderá ser tocado, transformando a mulher,
como na idade média, em apenas alguém que recebe os espermatozoides para formar
uma criança, sem vontade ou direitos sobre o feto, este amparado por lei.
Os juízes tem a mesma formação social dos médicos e a
tendência em um caso de aborto será de modo inconsciente culpar a mulher,
sendooutro ponto de pressão. Como dá para notar a sobrecarga vai tornar-se
insuportável. A única solução plausível é considerar a mulher que aborta vitima
das circunstancia, sem criminaliza-la e enterrar bem fundo esta Lei do Nascituro
por ser absurda. Deste modo além de diminuir a culpa, livra a mulher da pressão
da lei, desnecessária no caso.
A pressão social é de rejeição, mas menor que nos grupos
acima, mas ainda assim a mulher é isolada, pelo menos por algum tempo.
Atualmente o SUS fornece métodos anticonceptivos e
orientação de planejamento familiar em quase todas as cidades, apenas pouco
divulgados pelos nossos órgãos de imprensa, sempre omissos quanto ao que se
refere ao bem estar social. Exemplificando: em boa parte dos centros de saúde
as caixas de preservativos ficam livres no balcão, podendo pegar quantos quiser
sem nenhum controle, e há formação de grupos de Orientação Familiar nos Centro
de Saúde, com reuniões semanais.
O problema do aborto não é só a liberação em um decreto, mas
um problema sócio cultural complexo, que só se realizara com aprofundamento de
estudos e união de no mínimo pessoal da saúde e governo.
O que não podemos admitir é que se relegue a mulher ao abandono,
morte e mutilações: muitas das complicações provocam esterilização definitiva
da mulher juntamente com outras sequelas.A culpa a que está submetida pode
levar a droga adição com drogas licitas ou ilícitas, e a propriedade de seu
próprio corpo, conseguida depois de muitas lutas válidas das feministas não
pode ser revogada como tentam fazer atualmente.
A sociedade tem que se interessar pelo tema e, não ser
apenas a favor ou contra. Mas, procurar meios de preservar a vida e a
integridade psicológica da mulher, sem agressões e sem torna-la culpada por uma
falha social que existe muito antes dela nascer.
08/10/2013
Tony-poeta
Publicado no Humanitas
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