sábado, 24 de maio de 2014

aborto e a sociedade

ABORTO E A SOCIEDADE


A Sra. M., uma mulher de trinta e cinco anos, bonita, viúva e mãe de duas adolescente procurou-me. O ano era 1976. Apresentava agitação e muita angustia. Estava grávida. Na época que ainda se exigia a virgindade para casar, ela como viúva e grávida, com filhas adolescentes entrara em desespero. Teria que fazer um aborto sem que ninguém soubesse para proteger o núcleo familiar, sob sua responsabilidade.
O motivo da consulta era não a orientação médica específica, mas para ver se poderia informa-la onde era possível interromper a gravidez, solicitação que como clinico não saberia informar. Na sociedade tanto a mulher que parte para este procedimento, quanto o profissional que o realiza fica mal visto no meio médico e social sendo sumariamente isolado.
Diante das circunstancias da época, acreditei serem justas as reivindicações da senhora, e mesmo não conseguindo ajuda-la, nem em uma simples indicação fiquei com o tema martelando em minha cabeça, na duvida entre o que me foi passado como profissional e como era a vida fora dos ensinamentos acadêmicos. Nunca mais tive contato com esta paciente. Possivelmente ela conseguiu seu intento em alguma clinica que o realizava clandestinamente. A curetagem é um procedimento fácil, possível fazer sem grandes recursos técnicos.
Atualmente o aborto continua em discussão, se é que podemos considerar uma discussão, já que permanece proibido por lei com penas de prisão, inclusiveda mulher que aborta.  É realizado clandestinamente, tanto em determinadas clinicas particular, onde não é ventilado nem para outros médicos, mas com alguma segurança, ora em mãos de aborteiras sem preparo, com métodos arcaicos e de alto risco para a mulher; ou ainda em desespero dentro na própria casa com introdução de agulhas de tricô no útero, colocação de determinada alga que dilata o colo do mesmo, ou ainda com a ingestão de comprimidos abortivos e colocação simultânea na vagina. Dando inicio a expulsão do feto, que será, ou não, completada num Pronto Socorro, com risco real de perfuração do útero e de infecções sérias que podem levar a óbito.
A idade da mulher atualmente é estatisticamente entre os 20 e 25 anos, geralmente já tiveram filhos, tem dificuldades econômicas reais, e o abandono por parte do parceiro frequente, ou seja, uma situação social altamente vulnerável, transformando o aborto num problema social muito mais que um ato de anticoncepção. Muito poucas mulheres fariam o aborto se as condições fossem diferentes; pois elas também são sócio culturalmente contra o aborto; o que as leva a procurar o ato extremo, incompatível com seus princípios é semelhante a Sra. M. é um ato de proteção a família, na maioria das vezes.
O numero de abortos no Brasil é estimado em um milhão ano, com duzentos e cinquenta mil complicações, conforme o DATASUS e, aí mais alarmante um óbito a cada dois dias, o que o classifica como um problema de saúde pública a ser resolvido urgentemente.
A maior pressão no Brasil e, também no resto do mundo é exercida pelos grupos religiosos, sob a alegação que o feto tem vida a partir da concepção, concluído que estamos tratando de um assassinato. Interessante notar que excetuando o espiritismo, que fala claramente contra o aborto em um de seus livros, esta alegação vem dos pregadores, não da base religiosa do profeta, que é lacônica sobre o assunto. Na verdade o problema religioso torna-se deste modo muito maior.Ao mesmo tempo em que o pastor que efetuando um trabalho de ressocialização em presídios, uma ação, diga-se de passagem, necessária, exclui mulher que aborta de sua comunidade sem nenhuma chance. Olhando-se do ponto de vista sociológico, o Pastor como portador da palavra do profeta, diante de uma transgressão desta, que foi dada por sua exclusiva interpretação, não pode atribuir a falha as escrituras, pois lá não se encontram.
Tem as opções atribuir a si mesmo a falha, correndo o risco de ficar desacreditado na comunidade por não transmitir direito os ensinamentos; ou atribuir esta falha a todogrupo religioso por ignorar o estado de abandono em que a mesma se encontrava, sem ser notada por ninguém, isto é, penúria material e psicológica e, lidar com uma agitação interna de toda a comunidade que tentará se eximir da culpa, o que faz esta via ser de difícil manejo.
 Assim, a opção segue outro sentido e se culpa a mulher já fragilizada, numa atuação hipócrita, responsabilizando-a por todos antecedentes que lhe causaram a angústia do momento e proíbem-na de praticar o aborto, caso não tenha feito, isto sem apresentar qualquer solução. Em contrapartida se este já estiver consumado é praticamente expulsa de seu meio. Um perverso somatório de culpas, com efeitos graves na vida da mulher, onde perde o possível filho e perde a graça de um deus em que ela acredita.
O grupo principal para uma liberalização do aborto, que ora se discute são os profissionais da área da saúde; incluindo aí médicos, enfermeiras e auxiliares de enfermagem, assistentes sociais e psicólogos. A formação da maioria destes profissionais, geralmente de classe mais abastada, é contra o aborto e tem repulsa por ele. Há inúmeros relatos da paciente chegando ao serviço com sangramento e em expulsão, que ficam isoladas, com espera de socorro acima do necessário, sem nenhum dialogo com pessoalresponsável pelo atendimento e, em alguns casos descritos na literatura, a curetagem é feita sem anestésicos, altamente dolorosa, no intuito claro de “castigar” a criminosa que se submete a tal ato. A repulsa é real e de formação acadêmica. As clinicas que porventura façam aborto, o sigilo é exigência tanto do ponto de vista jurídico, como do ponto de vista do grupo profissional, pois todo aborteiro é isolado da comunidade médica.
Como não há serviço de aborto sem pessoal médico, é necessário um trabalho bem elaborado sobre o tema, preferencialmente por alguma Universidade confiável, para convencer os profissionais que: Estão realizando um ato médico necessário e não um ato contra a moral. Sem este acerto não é possível pensar em liberação.
Temos ainda o ponto de vista jurídico, a mulher que aborta, se denunciada, é criminosa e responde a processo. Por outro lado está em tramites para aprovação a Lei do Nascituro. Esta lei, tramitando por pressão religiosa, dá ao feto todos os direitos, o que fatalmente se chocará com a liberdade da mulher, dona que deve ser do próprio corpo, de modo que, este embrião, este ser que é ainda uma possibilidade de vida e cientificamente se considera um corpo estranho na mulher, não poderá ser tocado, transformando a mulher, como na idade média, em apenas alguém que recebe os espermatozoides para formar uma criança, sem vontade ou direitos sobre o feto, este amparado por lei.
Os juízes tem a mesma formação social dos médicos e a tendência em um caso de aborto será de modo inconsciente culpar a mulher, sendooutro ponto de pressão. Como dá para notar a sobrecarga vai tornar-se insuportável. A única solução plausível é considerar a mulher que aborta vitima das circunstancia, sem criminaliza-la e enterrar bem fundo esta Lei do Nascituro por ser absurda. Deste modo além de diminuir a culpa, livra a mulher da pressão da lei, desnecessária no caso.
A pressão social é de rejeição, mas menor que nos grupos acima, mas ainda assim a mulher é isolada, pelo menos por algum tempo.
Atualmente o SUS fornece métodos anticonceptivos e orientação de planejamento familiar em quase todas as cidades, apenas pouco divulgados pelos nossos órgãos de imprensa, sempre omissos quanto ao que se refere ao bem estar social. Exemplificando: em boa parte dos centros de saúde as caixas de preservativos ficam livres no balcão, podendo pegar quantos quiser sem nenhum controle, e há formação de grupos de Orientação Familiar nos Centro de Saúde, com reuniões semanais.
O problema do aborto não é só a liberação em um decreto, mas um problema sócio cultural complexo, que só se realizara com aprofundamento de estudos e união de no mínimo pessoal da saúde e governo.
O que não podemos admitir é que se relegue a mulher ao abandono, morte e mutilações: muitas das complicações provocam esterilização definitiva da mulher juntamente com outras sequelas.A culpa a que está submetida pode levar a droga adição com drogas licitas ou ilícitas, e a propriedade de seu próprio corpo, conseguida depois de muitas lutas válidas das feministas não pode ser revogada como tentam fazer atualmente.
A sociedade tem que se interessar pelo tema e, não ser apenas a favor ou contra. Mas, procurar meios de preservar a vida e a integridade psicológica da mulher, sem agressões e sem torna-la culpada por uma falha social que existe muito antes dela nascer.

08/10/2013
Tony-poeta
Publicado no Humanitas





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