quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

LIXEIRO OU COLETOR DE LIXO?





Quando moleque, o lixeiro sempre despertava minha atenção. Meus pais falavam que eles ganhavam muito apesar do serviço.

O ser lixeiro, naquele tempo, era realmente inseguro. Sem luvas, sem roupas apropriadas. Era considerado como degradante pela população da classe média. Hoje ainda é. Recentemente um ancora da televisão, não percebendo que estava no ar, proferiu palavras de tom preconceituoso contra os mesmos.

Com proteção sanitária adequada: luvas e roupas, adicional de insalubridade, vale transporte e plano de saúde, seus ganhos refletidos no nível de vida são atualmente menores.

Naquela época ganhavam realmente mais. Tinham um bom nível de vida, casa própria. O conforto compensava o preconceito e a falta de higiene do trabalho. Mas, como um trabalho não qualificado, não regulamentado como era na época, pode dar tantas vantagens? Como hoje protegidos pode piorar a qualidade de vida?

Voltando no tempo, o lixo era coletado em caminhões com aberturas superiores, tipo janelas e ao ser despejado era acomodado com um garfo de cabo longo. Aí começava o ganho. Ao removê-lo o material mais limpo e aproveitável era separado e vendido. Na época não existia as garrafas pet, só de vidro; o hábito de jornal era muito maior do que agora com a internet. Portanto, todos os vidros e jornais da região de coleta eram vendidos, alem de outros descartes comerciáveis. Isto numa região de classe média representava um bom ganho adicional; não contando com objetos descartados por engano. Um vizinho meu certa feita jogou um relógio ao lixo. Com certeza eles o encontraram.

No final do ano, sempre foi habito de se recompensar quem prestou serviços. Era hábito, lixeiros, carteiros e demais profissionais que visitavam as residências confeccionarem cartões simples de Boas Festas, distribuírem; e receber o agrado nos últimos dias do ano. Este presente era, ou um artigo natalino ou em dinheiro. Como no caminhão de lixo trabalhavam quatro ou cinco pessoas, a fatia era sempre maior e mais gorda. Todas as vantagens somadas se refletiam no modo de vida em família, que se tornava confortável.

Além do fator monetário, apesar do preconceito embutido, eles eram uma população visível e muitas vezes conhecidos pelo nome. Explico: Não havia saco de lixo. O lixo era depositado em lata. Tinha de ser recolhida no dia, pois eram misturados descartes não contaminados e restos alimentares. Se não fosse recolhido, fedia. A presença do lixeiro era importante para a higiene. As latas tinham que ser lavadas diariamente. Como a mulher cuidava do lar, não trabalhava fora; era comum ela ou algum filho correr atrás do caminhão quando demoravam em por a lata na rua. Sendo os trabalhadores sempre os mesmos, começavam a se tornarem conhecidos na localidade.  

Ser conhecido e prestar serviço necessário logicamente contribuíam para respeito e melhor contato.

Hoje, com todos os cuidados de higiene e do progresso a população de coletores se tornou totalmente invisível. O caminhão passa, algumas pessoas sem face e nome correm, jogam o saco no mesmo e vão embora. Ninguém é notado. O lixo é compactado e levado a local adequado para descarte. Os funcionários têm meta a cumprir; tantas ruas em tantas horas. Trabalham correndo, para darem conta. Não param e ninguém os nota. Não mais é permitido, nem possível coletar recicláveis.

O predomínio hoje, principalmente em bairros de classe média é de condomínios. Não mais fazem seu cartão de natal, por ser desnecessário, já que nada vão receber, nem um voto falado de Bom Natal. Perderam em ganho e em visibilidade. O preconceito continua e se agrava.

A narrativa acima demonstra bem como a Técnica, mesmo bem empregada em seus termos, pode ter graves efeitos colaterais na população. Neste caso,foi aplicada para dar condições de saúde e regulamentar o trabalho, o que é louvável. Até mudaram o nome de Lixeiro para Coletor. Esqueceu-se, porém, de considerar a práxis, ou seja, as pessoas a serem beneficiadas. Por outro lado, o estudo do tempo de trabalho visando lucro ignorou a pessoa classificando-a como peça de uma máquina de trabalho, e pior ainda, se adoecer causa prejuízo ao agente empregador, daí a proteção a saúde.

Estas pessoas, já estigmatizadas previamente, foram descartadas socialmente. Não que o ganho mensal seja ruim. Mesmo pequeno tem-se uma maneira de se programar e com jeito equilibrar as finanças, mesmo num nível menor de ganho. A proteção sanitária era necessária e urgente. Mas a inserção social, além de desprezada, serviu para excluir. Teve, portanto efeito contrário. Hoje eles são totalmente invisíveis.

O que se nota na atual sociedade é que esta se estratifica sem nenhuma ligação com seus extratos sociais. Dentro de uma mesma camada social, a questão do “status”, ou seja: o carro, a casa, a roupa e aí por diante fazem subclassificação dos iguais, e pior, com tom pejorativo. Levando esta estratificação para funções de menor escolaridade e preparo a diferença se torna gritante; o que vemos refletido na diferença salarial de nosso País, com diferença entre o mínimo e o máximo superando quarenta vezes – Nos países dito primeiro mundo esta diferença que era quatro ou cinco vezes, atualmente começam a tomar também proporções preocupantes.

Montesquieu, em seu “memorando a constituição alertou:-” A origem do mal e o próprio mal vêm da confusão que se faz nos últimos tempos entre a tolerância exterior e a tolerância interior. Considerando um elemento interno e outro externo, a estratificação é sempre uma forma de agressão: o elemento externo além de pressionar, encurrala e não dá saída para o elemento interno, como observamos nesta profissão, atingindo exatamente a essência do vivente, ou seja, seu elemento interno.

Dar casa e comida resolve a subsistência, mas não insere socialmente. A inserção social é assunto complexo onde o inter-relacionamento tem que ter pontos de convergência, para que as partes tenham pertencimento e coesão. A sociedade de consumo e ostentação está afrouxando e mesmo rompendo estes laços, com graves lesões ao tecido pessoal e familiar, com graves repercussões para o todo.

Lanço uma pergunta: Será que o aumento de criminalidade e do uso de drogas, em parte, não é resultado da não inserção e o conseqüente afastamento social provocado pela técnica direcionada ao lucro exclusivamente. Nesta e em outras profissões?



31/12/11

tony-poeta pensamentos

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